Caderno de exercícios

Mário Carneiro
14 min readAug 6, 2021

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“E em tudo o que eu faço
Existe um porquê
Eu sei que eu nasci
Sei que eu nasci pra saber”

Cido se recheava de inveja ao ouvir as histórias que seus colegas e amigos contavam no pátio da escola: viagens a lugares distantes do continental Brasil, voltas de kart na pistinha do supermercado, idas ao parque de diversões da capital, e por aí vai. Mesmo que não fossem exatamente as extravagâncias dos abastados e das estrelas, tendo em vista que era cria do ensino público, era esse o tipo de desfrute classe-média que sua família não costumava contemplar, salvo as raras descidas ao litoral. O menino sentia que o tédio de seu mundo se confundia com o que experienciava em seu coração e quando se olhava no espelho: magrelo demais, cabeçudo demais, baixinho demais. Normal.

Via de regra, havia um momento especificamente recorrente no qual Cido chamava a atenção, e não no bom sentido: a hora da chamada. Fora semente de um feriado especialmente ouriçado, sempre promessa de rebuliço no cartório em nove meses. Em consequência da confusão que se manifestara na tal repartição pública no dia em que sua mãe o registrou, o funcionário ouvia com dificuldades o que aquela mulher lhe dizia, atordoado pelo excesso de informações, e inscreveu-se no garoto uma permanente marca, nome-cruz que lhe traria uma vida de conflitos e tensões.

O menino Narcido, no começo de todo ano letivo, corria para a mesa dos professores no intuito de pedir para ser chamado pela alcunha — requisição que era frequentemente negada, o que sempre abalava a frágil estrutura de conforto que Cido erigia em torno de si. Cada vez que era chamado apenas pelas quatro últimas letras de seu nome era uma conquista que o garoto sustentava com uma mistura de orgulho e ubíquo terror: sempre se introduzia a pessoas novas somente pela denominação e uma gota de suor escorria de seu semblante cada vez que alguém lhe chamara, com maior ou menor jocosidade, de Aparecido. Era um nome bonito até, queria que fosse verdade. Por outro lado, nunca perguntavam, afinal de contas, qual seria de fato seu nome; para todos os efeitos e na maioria absoluta do tempo, Cido mais do que bastava.

Quando percebeu que a normalidade de sua amplamente forjada identidade foi a cereja do bolo de enfado que era sua vida, Cido se inspirou em um disco de sua mãe que tinha na capa uma mulher ruiva esquisita — mas linda — e resolveu mudar. Só não fazia ideia de por onde começar. Coisas como piercings e brincos pareciam intrusivas demais — vai que eu me arrependo!? — e tampouco tinha idade para tatuagens. Resolveu pintar o cabelo. Sua mãe, leiga tanto em termos de tinturaria capilar quanto em crises adolescentes, o instruiu em direção à impossibilidade de fazer aqueles tons coloridos e ao mesmo tempo soturnos dos grunges — deve ser coisa de rico — por conhecer somente a arte do papel crepom e das colorações de supermercado. O menino acabou por se contentar com a inundação de suas madeixas castanhas com um loiro que, por desventura, acabou por lembrar instantaneamente a todos da embalagem de mostarda Heinz, que era um amarelo um tanto mais intenso do que o da Hellmann’s, por exemplo.

Todos riam. Cido se viu mais uma vez naquele lugar de esperança na combustão espontânea que o acometia ao início de toda aula de algum professor-burocrata que se recusava a concedê-lo a mínima indulgência, com o agravante da abrangência da crise: em relação ao nome, conseguia conter os danos nos muros da sala de aula de sua turma; já o cabelo, extrapolava inclusive os da escola. Mal sabiam aqueles meninos bobos que, dez anos depois, todos estariam com tintas tão ou mais ridículas que a de Cido na cabeça, conquistando os corações das garotas. Talvez seja por isso que todos riam, mais ou menos — sendo Lina a única que simplesmente sorria.

Natalina era uma garota doce, alegre e simpática cujo nick de quatro letras, ao contrário de Cido, lhe veio à vida através do carinho, assim como frequentemente o é com as Carols e Bias desse mundão. No entanto, sob o olhar masculino, ainda que infanto-juvenil, Lina era a bonitinha burrinha por ter um corpo relativamente desenvolvido para a pré-adolescência e, geralmente, não ser apegada aos estudos — o que de modo algum significava ausência de inteligência, visto que driblava com garbo e habilidade aquele universo de provações veladas entre piadas e brincadeiras.

Mal sabia Lina que seu status fora cunhado por Biel, colega de turma dela e de Cido que se divertia com a inocência de professoras idosas enquanto discursava sobre suas literalmente inacreditáveis explorações sexuais. Os garotos da escola malemá entendiam o que Biel professava, mas Cido se deixava enganar e inventava narrativas de teor semelhante a fim de entrosar. No fundo, se revoltava sobretudo com a subversão do sistema de apelidos que Gabriel realizava, e às vezes sonhava que o chamavam de Riel e lhe imputavam o mesmo tratamento que o aplicado à sua fase super-saiyajin — como alguns garotos diziam-lhe de modo irônico, maculando toda a graça de se imaginar com superpoderes.

Ao ultrapassar o torpor causado pelo embaraço que lhe suscitava a sucessão de dedos apontados e gargalhadas espalhafatosas, o tornado-loiro conseguiu encontrar em Lina toda a compreensão que precisara naquele contexto. Um sorriso singelo, ausente de deboche e cheio de compaixão. Ou ao menos era o que sentia. Na verdade, Lina achava aquela figura inacreditavelmente hilária e degustava intensamente daquele momento em silêncio, sobretudo pois Cido era também um dos garotos que lhe importunavam a vida. Era uma retribuição ínfima, mas saborosa. Porém, sentia que havia algo de aproveitável naquele garoto; ele tocava violão e escrevia poesia, e ela ainda acreditava que isso significava algo.

Cido via em Lina um porto seguro e, com efeito, era somente isso que ele fazia: ver. Em seu íntimo, os versos ganhavam uma nova inspiração e destinatária; confrontado com o coletivo, porém, introjetava em si e em seus pares um abismo imaginário entre a bonitinha e ele, só mais um menino sem nada a mais. Com o passar das semanas, sob a perspectiva da normalização de sua situação capilar, Cido resolveu mimetizar uma estratégia de paquera que via seus semelhantes adotarem e que, aparentemente, era deveras efetiva: estabelecer contato com as garotas, mas, de início, apenas cumprimentá-las, para não parecer um carentão. Assim, todos os dias que chegava na escola, se aproximava especialmente do grupo de garotas que incluía Lina, cumprimentando-as com um beijinho na bochecha, fazendo questão de olhar somente nos olhos dela, para que ela entendesse que era por ela, e só por ela que ele estava ali — pelos beijinhos e pela energia concedida para enfrentar a crise da crina dourada.

Nas aulas de uma das velhinhas mais cândidas do corpo docente da escola, a Dona Verinha, Biel se aprazia ao exibir-se para seus colegas nos momentos em que a professora se virava para a lousa. Em uma dessas ocasiões, Dona Verinha organizou a turma em duplas para a realização de uma atividade e adotou aquele método desastroso que professores mais antigos acreditam ser eficaz: misturar os bons com os maus alunos. Cido, por toda a sua vida, sentara-se na primeira carteira, não por se acreditar excepcionalmente inteligente ou algo do tipo, mas justamente porque sabia que necessitava de uma predisposição espacial para atentar-se à aula — se sentasse no fundão com Biel, se perderia na bagunça, e prezava pelo caráter médio, incólume, de suas notas, que mantinha os professores e seus pais satisfeitos com sua performance acadêmica.

Não era exatamente o que se poderia chamar de amizade, mas a relação entre Cido e Biel era, no limite, de respeito mútuo. Ambos jogavam com as cartas que lhes eram dispostas no baile da sobrevivência escolar. Sentados lado a lado, a dinâmica, no geral, funcionava pois enquanto Biel se entretia com o desafio de reproduzir as ofensas à Dona Verinha com maior proximidade, Cido se equilibrava entre copiar a lição e participar passivamente da dinâmica. Numa dessas brincadeiras, um dos garotos do fundão se apossou de um pingente dourado que Lina havia deixado repousar brevemente em sua carteira, e estabeleceu-se um toma-lá-dá-cá com Biel.

Em um dos arremessos, Cido acabou por agarrar o berloque por reflexo e, ao perceber que era de Lina, se recusou a entregá-lo para Biel que, de início, solicitava o objeto a Cido com soquinhos propositalmente leves no braço. Ainda no espírito de brincadeira, Biel aplicou um mata-leão no menino que, instintivamente, ressuscitou de supetão sua fantasia de desenho japonês: se livrou da constrição e meteu-lhe um murro na fuça que provavelmente pegou de raspão, mas, não obstante, proporcionou a Cido o que ele imaginava ser exatamente a mesma sensação que Goku devia ter vivenciado ao encaixar o primeiro golpe pós-transformação no vilão Freeza. Ambos se levantaram prontamente e estava instaurado o circo-caos.

“Um belo dia vou lhe telefonar/pra lhe dizer que aquele sonho cresceu”

Entre súplicas desalentadas e gestos que mais espalhavam ar para os lados do que evitavam qualquer tipo de ação, Dona Verinha se via completamente incapaz de impedir o imbróglio. Tomado pela adrenalina, Cido desferia golpes incrivelmente ineficazes — ainda que Biel exagerasse exponencialmente todas as suas histórias, não era um banana que lia Camões escondido na biblioteca da escola. Infelizmente para o defensor da honra da mulher amada, a recíproca não era verdadeira; estava sendo pulverizado pelos movimentos minimamente experientes de seu antagonista. À sorte que lhe coube, Dona Verinha era gentil, mas não havia nascido ontem: já no deflagrar da contenda, enviou um dos alunos para buscar auxílio junto à diretoria da escola. Em vistas da completa humilhação pública de Cido perante seus pares, que assistiam com um misto de preocupação e regozijo, quando o menino já cambaleava tal qual os derrotados no Mortal Kombat que aguardam o sempre humilhante Fatality, membros da direção adentraram a sala, acabaram com a festa e encaminharam os meliantes.

Cido foi levado à sala da vice-diretora, que lhe aplicou um longo sermão reforçando o infortúnio daquela situação toda e a necessidade dele não se meter com esse tipo de moleque que infelizmente ainda tem aqui na escola. Suspendeu-o por dois dias com uma pena que, afirmava a senhora, sequer entraria em seu currículo escolar — era mais para ele descansar e deixar a poeira baixar, do que uma punição propriamente dita — e o levou pessoalmente de carro de volta para sua casa. Findadas as quarenta e oito horas, Cido retornou à escola e foi recebido com entusiasmo pelos amigos mais próximos, que alucinavam ao contar a história de como um nerdão como ele enfrentou aquele mala que enchia o saco de todo mundo, causando a sua expulsão e livrando-os daquele fardo.

Todavia, seu verdadeiro anseio era pelas impressões de sua bela; se imaginava recebendo-a em seus braços e sendo recompensado com a maior das paixões sem sequer precisar recorrer ao lirismo, apenas com aquela demonstração de indômita bravura. Lina e as meninas, porém, se compadeciam com a situação de Biel; de fato, algumas inclusive se consideravam próximas a ele. Por vezes fora um ombro amigo em situações pessoais, delicadas — ainda que isso parecesse impossível para os meninos, diante do que viam nele. Sem conseguir entender, Cido amargou aquela derrota, comprimindo o azedume de suas papilas gustativas com uma Coca-Cola e um folheado de presunto e queijo na cantina da escola.

Por volta dos tempos em que já se via em um estágio avançado de proficiência na arte da sedução, a ponto de até se despedir das garotas ao final do período, Lina interpelou-o diretamente pela primeira vez: adorava aquele cabelo lourinho que cê fez, mas assim tá melhor mesmo. Eram essas as únicas palavras que Cido precisava para angariar as forças necessárias e completar sua antologia poética. Prometeu para si mesmo o momento apoteótico da entrega da dádiva à sua musa. Se preparou por meses, por vezes adiando o momento pois, bem, você sabe como é — tinha de ser perfeito. Ele a encontraria na saída da escola, no momento do arduamente conquistado beijinho na bochecha de partida, simplesmente a entregaria o tomo do amor-maior e, assim, despertaria no coração da menina a flor da emoção eterna, o encontro escrito para ser. No dia seguinte, e em todos os outros até o fim deles, tudo seria mãos dadas, sorrisos e beijinhos — nem sempre só na bochecha. Imagine só!

Em uma terça-feira qualquer, Cido finalmente aspirou toda a coragem que carecia para enfiar aquela pasta enorme — recheada de folhas destacadas de cadernos e cujo conteúdo derreteria o coração do mais cruel dos deuses — em sua mochila e partiu rumo a Eldorado — que, no caso, era uma escola pública com o nome de algum figurão do passado que ninguém tinha a mais remota ideia de quem fora — para encontrar sua ninfa de ouro. Sobreviveu às intermináveis horas de falatórios proferidos por aqueles velhos com rostos cansados e cheirando a giz que já não conseguia mais suportar cotidianamente, muito menos hoje. Resistiu com altivez até no período do intervalo, tomado pelo desejo avassalador de se ajoelhar no meio do pátio, aos pés de Natalina. Teria todos os colegas, amigos e velhos da escola como testemunha. Diante das reminiscências do espetáculo-surra e da cabeleira-luz, agradeceu a deus pelo comedimento.

Ao soar do último sinal, não acreditou na desventura que lhe acometia: precisava desesperadamente mijar. Confiou que a urgência aceleraria o processo, mas falhou em calcular o dano que o excesso de líquidos ingeridos por conta do nervosismo amoroso lhe causaria. Ao chegar no portão do prédio, tomou-se em desespero ao não encontrar a face de Lina na multidão de alunos que deixavam as premissas. O fato de todos usarem o mesmo uniforme certamente não ajudava, mas Cido tinha confiança que distinguiria na multidão o brilho daqueles olhinhos tão lindos que há uma eternidade decorava devagarinho. No decorrer de sua expedição em busca de Lina, ouviu de relance de um grupo de garotas que ela estava indo para a esquina da escola, ao encontro de Biel. Com o coração pulando batidas e empunhando firmemente seu atestado de veneração à deusa, partiu em direção a seu destino.

Mãos deslizavam com celeridade e desenvoltura por entre os braços e cintura de Lina, que entregava seus lábios ao encontro do desejo. Para os lábios errados, gritava uma voz na cabeça de Cido ao presenciar a cena, com sua pastinha de poeminhas bobinhos e todos os outros diminutivos autodepreciativos possíveis que alicerçavam a vergonha que sentia de si. Naquele momento, a gozação em torno de seu cabelo parecia uma doce memória de infância. Saiu furioso em direção ao nada ao quadrado que subitamente se tornara sua vida diante da perda abrupta e absoluta do único instrumento ainda capaz de produzir sublimações — o amor. Uma pilha de cinzas é o que restaria de seus escritos e de seu coração.

A verdade, porém, é que Cido ainda se apaixonaria muito nessa vida. Eventualmente, viria até a gostar de seu nome, associando-o ao seu quase xará da mitologia grega e aprendendo com ele sobre os perigos e delícias da vaidade. Nunca mais escreveu poesia alguma, mas mantinha sempre uma caneta por perto pois nunca se sabe quando a inspiração pode bater; quanto mais vivia, mais percebia que precisava melhor entender o que sentia antes de tergiversar sobre as belezas do humano — principalmente quando se deparou com a notícia do casamento de Lina e Biel, reunidos duas décadas após os tempos de escola.

No anúncio que publicaram nas redes sociais, convidavam a todos os contatos com somente um pré-requisito: cada um precisaria levar sua contribuição de comida e bebida. Tratava-se, na prática, muito mais de uma confraternização simbólica do que qualquer outra coisa. Era moda entre os casais liberais da época, portanto não surpreendia que tal proposta fosse adotada na festa de uma dupla formada por uma psicanalista e um advogado que se reconheceram nos corredores da Universidade.

Munido de uma bandeja de linguiça toscana, um maço de cigarros e um fardo de seis garrafinhas, o agora Prof. Dr. Narcido se sentia prestes a reviver todo o terrorismo que sentira nas inúmeras ocasiões de aproximação à mesa dos professores para a súplica em relação a seu nome, agora metamorfoseado no reencontro com o temido grupo conhecido popularmente como o pessoal da escola. Findada a propositalmente pequena quantidade de cerveja que trouxera, aproveitaria a desculpa de que não poderia usurpar indevidamente a propriedade de outrem e iria embora — com alguma sorte, sem sequer precisar arquitetar uma suposta impossibilidade de cumprimentar os noivos. Não fazia a menor ideia do que sentiria ao recordar Lina e seus olhinhos sem ser pelas fotos sempre milimetricamente maravilhosas do Instagram.

Rever aquelas pessoas trazia uma peculiar mistura de acolhimento e estranheza: ao mesmo tempo que era reconfortante ver que nada mudou, também havia o problema de que nada havia mudado. As pessoas realmente agem de acordo com a lógica do grupo, pensou — porque agora não só se apaixonava pelas pessoas a sua volta, mas também as analisava. Enquanto alguém relembrava, sob prantos de riso, a coça que o noivo dera em Cido há milênios, uma mulher alta, trajando um vestido florido mais leve que o vento e portadora de um dos pares de olhos mais lindos do mundo se aproximou.

Ainda bem que Biel mudou muito desde aquela época, disse a Dra. Natalina. Mas confesso que nunca entendi muito bem o porquê de você ter feito o que fez, Cido. Contou que usava a história da bonitinha burrinha como moeda de barganha e troça com o companheiro, visto que era visível o esforço que ele fazia para lidar com o sofrimento narcísico masculino, como colocou a doutora. Narcido não guardava mágoas, mas, naquele momento, o coração que ameaçava saltar de sua garganta emudeceu sua voz, e um sorriso franzino foi o melhor que pôde oferecê-la.

Acabou permanecendo na festa, perdendo a vergonha de se apropriar da bebida alheia — àquela altura, não havia mais ninguém com capacidade cognitiva para tais distinções. Quando percebeu que não havia fumado até então, surpreendido pelo entretenimento proporcionado pelos ex-colegas, se afastou brevemente em um canto isolado do ambiente de festa para dar um trago. Instantes depois, surge Gabriel — o qual Cido ficou sabendo. na festa, que prestava atendimento gratuito a mulheres vítimas de violência doméstica e achava o fato de advogados serem chamados de doutor um infeliz resquício do passado colonial do país, como contaram-no de modo parafraseado. Ambos se olharam fixamente nos olhos e, durante o rapidamente suave movimento que Biel fazia para levantar seu braço direito, Cido cerrou seus punhos, esperando o acerto de contas final.

Ao finalizar o movimento, Biel pressionou repetidamente o polegar contra seus outros dedos fechados — solicitava um isqueiro. Com a mão esquerda, buscava um cigarro no bolso de sua camisa, enquanto Narcido se desarmava e entregava-o sua caixinha de fósforos. Gabriel exasperou-se sob o êxtase do primeiro trago em muito tempo, desde quando ele e Lina descobriram que estavam grávidos — o que era segredo para todos até então, mas sentiu a vontade de dividir aquele amor-maior com Cido. Não necessariamente com o Prof. Dr. Narcido, mas sabia que era algo que explodiria a mente do menino. Aquele Cido que, há vinte anos, lutara com ele pela correntinha que, hoje, seria o algo velho da noiva — adotaram a tradição como forma de piada-crítica às excentricidades eurocêntricas e pequeno-burguesas de alguns casais, explicou Gabriel. Obrigado por ter vindo. De verdade.

Retornaram para festa e Gabriel pediu uma dança à Natalina, que imediatamente captou a fragrância de nicotina e milhares de outras substâncias tóxicas no hálito de seu companheiro, mas deixou passar — só deus sabia o quanto ela desejava o mesmo. Em uma mesa vazia, com uma lata de cerveja quente em mãos e três botões a menos na camisa, Narcido buscava nos cantos mais recônditos de sua intelectualidade entender como aquilo era possível. Ele, o fanático pela doutrina romântica, que encarnara em si toda ardência e desilusão, mas persistia — afinal, assim como com o Poetinha, tudo era só amor para ele — estava sozinho, vendo sua outrora prometida nos braços de seu outrora arqui-inimigo.

Foi então que inverteu a operação e, por um breve momento, sentiu aquilo que todos ali presentes tão tacitamente entendiam. Nem toda palavra explica, tampouco necessita de explicação. Roubou um guardanapo da mesa, tirou uma caneta do bolso da camisa e esboçou alguns versos. Guardou o papel, levantou-se e deixou a festa em passos espaçados, saboreando o gosto em sua boca de tabaco, álcool e de uma recém-descoberta, nova possibilidade de substância; reabilitação daquele velho instrumento.

Só o que lhe restava, dali em diante, era viver a hipótese.

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Mário Carneiro
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