Crianças têm política?
Resiste-se a politizar a infância para compeli-la a se assumir enquanto um dos últimos bastiões da “magia” no Ocidente. Na decadência do sentimento de ancestralidade da hegemonia (masculina, branca, cisgênera), aposta-se as fichas no encantamento pré-datado que é o devir das crianças às outras fases (todas inventadas, como se sabe) da vida.
Provocações à parte, contraditoriamente, é neste silenciamento político da infância que se atribui a esta um caráter inequivocamente político. A antropóloga Debora Diniz, ao ser questionada em entrevista ao Jornal do Comércio [1] sobre a questão da educação (sexual) e sua alegada “politização”, se ampara em um conceito de “ideologia” possivelmente para dialogar com aqueles que resistem, quase como um reflexo muscular, à “política”. Um artifício certamente interessante no que diz respeito a uma estratégia de avanço do tema no debate público, mas até quando não daremos os devidos nomes aos bois? Até a intelligentsia de esquerda se situa nessa seara.
Brincando com o fogo que é o pensamento de Gayatri Spivak (afinal, há de se preservar a inocência da idade da pureza), arrisco dizer que as crianças não têm voz [2]. Não podem enunciar demandas políticas, sociais e culturais específicas por si. No entanto, não deixam de ser um grupo social amplo, relativamente coeso, e com demandas políticas extremamente específicas, e localizar a infância no âmbito da política é imprescindível pois a evidencia enquanto instituição social em processo de disputa de significados e atribuições, o que implica também no enfrentamento de uma cruel constatação: a subalternização da infância é um projeto político.
Por outro lado, a pura coisificação da criança enquanto objeto de contestação política apresenta uma miríade de problemas éticos, por demais extensos para serem perscrutados aqui. Ainda assim, vale apontar como a esquerda brasileira (se é que é possível pensar de tal modo generalizado) vêm se engajando na apropriação de um imperativo moral no atual estágio de sua reestruturação sociopolítica. Isto é, procura situar-se ao lado da “sensatez” em meio a um contexto de consolidação e regularização de práticas políticas institucionais a priori consideradas fundamentalmente disparatadas. De ambos os lados, a disputa passa a adquirir contornos de “bem contra o mal”, com cada lado evidentemente assumindo a alcunha que lhe convém.
Não se trata de relativizar a violência, mas de questionar até que ponto a despolitização desta não beneficia inclusive aquilo a que se quer combater. Se o mal banalizado arendtiano [3] se tornou a regra, talvez seja a hora de voltar a localizá-lo nos espectros dos ismos que lhe contemplam. Espectros que, pelo menos desde o anúncio do bom velhinho do século XIX, têm caráter eminentemente político, e assustam pessoas de todas as idades. Marx não falou sobre um “fantasma da ideologia de esquerda”.
Parafraseando Darcy Ribeiro [4], a violência infantil não é uma crise, mas é parte integral de uma visão de mundo, de um projeto, que possivelmente carece de ser enfrentado como tal.
*O título do texto é uma alusão ao artigo “Artefatos têm política?”, do cientista político estadunidense Langdon Winner.
[2] Referência ao célebre texto da teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak, “Pode o Subalterno Falar?”.
[3] Para quem quiser um primeiro contato legal sobre o tema do Mal na obra de Hannah Arendt: https://revistacult.uol.com.br/home/violencia-e-banalidade-do-mal/
[4] Referência à frase atribuída ao antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”.