o blues do vai-e-vem
ele a teve. meu deus, como ele a teve. acima de tudo, eles se tinham. amor e paixão; o pacote completo. mas, um dia, ele a deixou ir. perdeu-a.
anos depois, se reencontram em uma situação completamente diferente. ele faz parte de uma gigantesca banda de rock ‘n roll, oriundo do mais puro honky-tonk e fora-da-lei; ela tornara-se de outrem. no caso, seu fiel irmão-de-armas, o vocalista.
ela e ele nunca foram de muitas palavras. ele lembra que preferiam demonstrar com ações, olhares, sorrisos e beijos. com o vocalista, senhor das palavras e do microfone, toda noite era anunciado seus sentimentos em canções permeadas por referências a bebidas alcoólicas e blues notes. ela aprendera a ver valor nisso e, no limite, o vocalista era um bom homem, e estes não são tão comuns hoje em dia.
entre olhares discretos e cheios de culpa, suas vidas seguiam caminhos paralelos, nunca cruzados. o estresse da turnê já mostrava seus efeitos na banda e, bem, você sabe como são os homens sulistas. divergências não se resolveriam em um debate saudável. todavia, ele não era de se envolver nas guerras de garrafas de uísque voadoras e demonstrações extraordinárias de drunken fist. talvez fosse profissional demais, ou suas preces pertenciam a outras questões, outra pessoa…
ao mesmo tempo que seu mundo ruía a sua volta, fora buscar refúgio em um lugar do passado, onde lembrava de tempos mais simples, do verde da grama, dela. com relativa surpresa, atesta: sim, ela considerou o mesmo. o que isso significa?, pensou. cumprimentaram-se com a amistosidade na qual haviam habituado-se nestes últimos tempos.
enquanto observavam pessoas aleatórias transitando pelo lugar, o vocalista, parceiro dela, surge, mas se senta relativamente distante, como quem observa de canto.
tá tudo bem?, ele pergunta. ela cede ao pranto e busca consolo numa fonte que havia perto. ele a segue e a moça já não conseguiria mais se contar. os problemas surgiam, e a aparente segurança que o vocalista oferecera já não mais correspondia à vida na estrada. entretanto, falava por metáforas e idéias inexatas. sentia-se responsável pelo curso das coisas.
dado momentaneamente por satisfeito, procura confortá-la. mesmo que sob olhadelas penetrantes de seu amigo, não se sentia culpado. era só um velho conhecido oferecendo um ombro a uma alma que muito necessitava. logo após, contudo, buscou respostas.
foi diretamente ao real centro de poder daquele universo: as esposas. enquanto os meninos brincavam de rockstar, eram elas quem balanceavam a destruição com o fluxo monetário que permitia uma existência cíclica e mais ou menos harmonioso deste mundo, além de serem os olhos que tudo vêem e os ouvidos que tudo escutam (ela ainda não fazia parte deste seleto grupo por não ter sua união oficializada).
os conselhos das esposas eram uníssonos. mesmo relatando mais claramente a situação, todos apontavam para o não-envolvimento dele em qualquer que fosse a prosa do casal. ele, evidentemente, não se contentaria e, agora com seu sangue texano devidamente fervido, demandaria respostas.
ainda atônito, procurava em todas as partes por seu camarada, cúmplice de incontáveis crimes que, ao menos é o que pensara, limitavam-se àqueles que desafiam a ordem e os bons costumes. nunca imaginou vê-lo envolvido neste tipo de sujeira.
encontram-se no cenário perfeito para a maior das brigas da banda: o palco do último show da turnê. peleja inédita, pois, apesar da tradição violenta do grupo no que diz respeito a resolução de conflitos, os dois eram os únicos que nunca haviam se enfrentado.
a discussão é previsivelmente acalorada. entre apontamentos de dedos e desabafos, o vocalista, de punhos cerrados e preparado para o combate, lança mão de sua última confissão:
a verdade é que… eu não amo ela.
eu não amo ela é a frase que se repete ao perceber que ela se encontra no fundo do salão, por entre as cortinas da sala, e presencia toda a cena. o clima se asserena e, quando ele constata que os maravilhosos olhos azuis dela não fitavam a face do vocalista, mas sim ansiavam pelo momento em que ele se viraria e a notaria, todo o ódio e confusão deixam seu coração.
ele raciocina que ela teria que escolher, e prepara sua defesa, intercalando entre súplicas idealizadas através do passado e desejos de redenção absolutamente contemporâneos. pensamentos vãos, tendo em vista que o vocalista deixou o recinto com um sorriso de canto no rosto, como quem sabe reconhecer amor verdadeiro e resolve buscá-lo para si.
o fim é despretensioso: ele a abraça e beija-a, sob promessas de nunca mais soltá-la novamente. e é em sua modéstia que mora sua beleza: é tão comum que se torna real.
e é sabido que o amor de uma vida não cabe em palavras.
a história sempre continua.
01/05/2017