O coração é uma dádiva
“…o óbvio utópico:
te beijar”
A palavra em inglês é gift, em francês é don, mas, ao menos no contexto antropológico brasileiro, utilizamos dádiva, a despeito de uma tradução mais imediata do primeiro, que provavelmente seria presente. Isso porque a dádiva pressupõe um vínculo, não raro uma obrigação, das partes envolvidas no circuito das trocas. Quem recebe um presente, nesse caso, tem também o encargo de passar a energia para frente; prosseguir com as relações, pois a troca é uma estrutura estruturante (e aqui acho que já tô misturando Antropologias — caso algum sabido esteja de olho, me perdoa!).
Marcel Mauss já tinha sacado que esse tipo de relação não se limita às então chamadas “sociedades primitivas”, mas gostaria de levar essa ideia a um objeto específico. O que é o coração, então, se não uma dádiva? Evidentemente, não me refiro ao órgão, mas à significação. Roland Barthes diz que se trata de uma palavra que “vale por todas as espécies de movimentos e de desejos, mas o que é constante é que o coração se constitui em objeto de dom — seja ignorado, seja rejeitado”. O que entendi disso é que dar o coração a alguém é sempre estabelecer uma relação — inclusive a despeito da vontade da pessoa amada, o que pode pegar mal, mas acredito ser muitas vezes inescapável.
A gente não escolhe a quem, quando ou onde amar, sendo a recíproca igualmente verdadeira. Com isso, não quero dizer que não existem especificidades relativas à atração (gostos, afinidades, preferências estéticas etc.), tampouco eufemizar as problemáticas do amor — sobretudo o romântico, o bode expiatório (não sem motivo, de certo) do momento. Sustento, no entanto, que existem dimensões, mistérios neste que não há ética amorosa, a exemplo da proposta da brilhante bell hooks, que deem conta de suas nuances — a contingência e a contradição são as duas características mais fundamentais do amor. Ele é tanto um ideal quanto uma prática, pensado e exercido das mais diferentes formas, nas mais diferentes culturas. Defini-lo, portanto, é limitá-lo e extirpá-lo de seu potencial criativo e, ouso dizer, mágico.
Ao menos nas sociedades modernas, o coração é o dispositivo simbólico, semiótico, que veicula o amor entre os diferentes sujeitos; é sobretudo plural. Até corações de veneno — como diria o louco, junkie e incrível Dee Dee Ramone — amam, ainda que com problemas e violências. Não se trata, todavia, de aceitar tais violências, porém é justamente por conta de seu caráter contraditório, e não por uma suposta virtude moral inata a este, que se faz possível tal disputa. Toda contradição pressupõe embate, contestação e inquietação. Amar, portanto, com frequência exige uma dose qualquer de empáfia: meu coração é teu na medida em que o amor é disposto, cabendo as variáveis relativas aos sujeitos envolvidos.
Ou, como disse Nina Simone, é fundamental levantar-se da mesa quando o amor não estiver mais sendo servido. Convém, no entanto, atentarmo-nos às mensagens cifradas nas refeições, onde o coração permanece amiúde o prato principal — ainda que nem sempre sensível.