Querubim
Eu era muito tonto.
Estávamos longe de casa, descobrindo novas formas de ser neste mundo. Você expandindo, desabrochando, quebrando seu pé na calçada do boteco; eu, mergulhando na melancolia, acanhado com a mera idéia da aventura que era sair de casa, como dizia uma música que nós gostávamos. Mesmo assim, a gente se conhecia bem: você sabia que podia contar comigo, e eu contava com isso.
Apesar de seu acidente, havíamos combinado de ir ver um show, do cara que tinha medo de sair de casa, e, adequadamente com seu florir, não seria um gesso fedido e uma muleta que inibiriam sua coragem.
Era um dos lugares mais bonitos da cidade. Nós ríamos de como as pessoas se compadeciam de sua situação, da bondade que viam em mim ao te acompanhar.
A piedade, graças a deus, nos proporcionou as melhores cadeiras do teatro, a um ou dois metros do cara que tinha medo de sair de casa, que nós amávamos.
Foi perfeito.
Posteriormente, fui junto a ti até sua casa. Era começo de madrugada. Você me perguntou se eu não gostaria de passar a noite lá, o que eu prontamente neguei com algum argumento fajuto, que inconscientemente me dava pistas da importância daquele instante.
No dia seguinte, ao ouvir o relato, um amigo exclama:
“Bá guri, tu percebes o que fez!?”
Eu não havia percebido. Eu era muito tonto.
Mas não me importei, e acredito que meu amigo também não compreendera direito a coisa toda. Guardei em mim esse momento, que foi perfeito — mesmo sem saber que seria o último nosso.
Daquele dia em diante, a rua já não mais me assustaria tanto.