Tanatopraxia
“I just want you to know who I am”
É difícil falar da morte.
Quero lembrar das poucas músicas que ela afirmava, categoricamente, gostar. De quando ela ouvia Raça Negra, Queen, Bee Gees. De quando ela colocava o rádio para tocar na Antena 1 o dia inteiro.
Quero lembrar de como ela dirigia o Fiat Uno que eu adorava. De como ela me bardeava pra todo lado. De como ela não se importava quando eu vomitava bêbado feito um gambá enquanto ela me buscava no bar ainda na adolescência. Não sei se quero lembrar que este foi o último carro que ela dirigiu.
Quero lembrar que ela dançou. Quero lembrar que ela se machucou dançando e isso mudou tudo, mas que isso também faz parte da vida.
Quero lembrar da eloquência dela ao criticar tudo que eu fazia, me impedindo de realizar as tarefas mais cotidianas porque ela acabaria fazendo tudo de novo. De como, um dia, palavras complexas como “displicência” já fizeram parte do léxico dela. Quero lembrar de como ela dizia “ára sô” e da preocupação dela ao me ver, carregando por aí, o Manifesto do Partido Comunista. “Não deixa à mostra desse jeito que é perigoso”, foi algo assim que ela disse.
Quero lembrar de tudo, mas já me esqueci de quase tudo. Das histórias, dos trejeitos, dos vícios de linguagem. Minha memória me trai, mas ainda bem que minha trajetória intelectual me consola ao dizer que tudo é narrativa.
Quando a hora chegar, se eu puder fazer um pedido, eu só queria que ela me dissesse, pela última vez:
O quê que você fez de errado dessa vez?
Ou algo assim. O quê quer que fosse que ela me dizia toda vez que algo dava errado, pois que a culpa era automaticamente minha. Já que estamos falando de desejos, gênios, magias…
Quando a hora chegar, espero que não me encham de memórias que não são minhas. Nossas.
É difícil falar da morte porque quando alguém se esvai, vai um tanto da gente também.