Tesoura sem ponta
“Sons, palavras
são navalhas”
Não me foi ensinado a viver. Nascido e criado no vazio verbal. Entendo que há quem considere isso um privilégio, mas não é tão bom quanto parece não saber se a vida é isso ou aquilo. No mundo, os pré-conceitos são úteis para criar primeiras delimitações, tatear o terreno, sentir perigos.
Quando estava em um dos primeiros anos escolares, vi um garotinho com a boca aberta, pingando sangue para dentro de uma lata de lixo. Haveria de descobrir depois que ele, considerado o “capetinha” da escola, havia cortado a língua com uma tesoura. Simples assim: só para saber como era.
O feitiço que o levou à automutilação foi tão somente o desejo: havia de saber que se tratava de uma transgressão, delírio, impropério. Mesmo assim, foi lá e pimba na bichinha.
Queria saber como o humano funciona em relação às coisas.
De certa forma, invejo-o. Nunca quebrei osso algum. Também não sei nadar. Toda adrenalina que desejei em minha vida vem de uma só fonte: o ser humano. Me embriago do Outro; a alteridade é meu fetiche e minha pulsão.
Não passo a língua na lâmina, mas me vejo insano diariamente ao cobiçar um novo corte no peito, posto que é sempre mais profundo do que o último.
(sempre, também, com a esperança inefável de que seja, enfim, o último).