Três pãozim
“Um destino que foi desenhado
O que mais alguém pode querer
Além de amar e ser amado?”
- Dois morenin e um mais claro, faz favor. Me vê também duzentas grama de mortadela.
A jornada se tornara tão recorrente que Dona Jana, da padaria local homônima, passou a deixar o pedido pronto de antemão. Serafim não precisava nem fazer com que Ernesto, o companheiro canino, se assossegasse: chegava com o braço esticado, encaixando as alças da sacola nele e só encostando o cartão na maquininha. Por vezes o cão acordava tão animado para dar sua voltinha, arrastando Serafim pelas vielas e calçadas insuficientemente preservadas do bairro, que mal dava tempo de acertar a conta na hora, de modo que Dona Jana, com o tempo, se acostumou a anotar num caderninho a dívida, sempre diligentemente quitada depois, geralmente sem Ernesto e sua euforia.
Em um desses dias de acerto de contas, Dona Jana — que, como toda boa pequena comerciante, é tão interessada em vidas quanto em vendas — aproveitou a ausência do cão para indagar Serafim:
- Esses três pãozim aí, são tudo pro moço ou tem mais alguém?
- Tem sim, Dona Jana, mas ela não gosta de caminhada, muito menos de acordar cedo. Pra completar o desaforo, ainda é daquelas que come de tudo e não engorda, acredita? Agora eu e Ernesto — meu cachorro, sabe? Então, aí fica os dois aqui correndo atrás do prejuízo todo santo dia, como a senhora bem vê.
Por prejuízo, era evidente que Serafim se referia ao precipício de autoestima que o separava de Isabel, a atual deusa esculpida no hall de pedestais do anjo-cupido que custava em acertar a flecha quando o requerente era si mesmo. Costumava dar bons conselhos pros amigos, porém. Enquanto ela se deleitava nos dois pãezinhos matinais, que contemplavam quase toda a cota diária de mortadela e contavam com doses generosas de maionese e outros acompanhamentos mais, ele calculava friamente as calorias das fatias que incluía em seu solitário lanche — com eventuais sobras para o cão, que também ingeria trigo e culpa.
Havia apenas um motivo que fazia Ernesto abdicar de seu desfile matinal: quando Isabel — ou mamãe, alcunha que surgia esporadicamente, dependendo de uma complexa equação que envolve carência e antropomorfismo — permitia o acesso às cobertas e ao seu abraço na noite. Nesses momentos, seu coraçãozinho se preenchia com o mais tenro e puro dos amores. O problema é que papai e mamãe precisavam transar e, ainda que não soubessem bem o por quê, era estranho fazê-lo na presença do cachorro — Serafim só sabia que não precisava de motivos adicionais para questionar sua performance.
A última vez que Ernesto adentrou às colchas foi o derradeiro centímetro do crescente abismo que vinha separando Serafim e Isabel. No começo do amor, ela costumava dizer, brincando, que ele não precisava se preocupar pois não foi pelo corpo que ela se encantou, foi só pela cabeça; agora, já não tinha mais essa ternura:
- Pelo amor de deus, Serafim, você precisa fazer terapia. Se nem eu tô ligando se você parecer, sei lá, um botijão de gás, por que você se importa tanto com isso?
Para Serafim, ela — que sempre fora perfeita — simplesmente não dispunha de meios para compreender o problema, ainda que sua sugestão tivesse certa justeza. Ele, por outro lado, não conseguia ver que perfeição é um gordo e opressivo fardo que colocamos em coisas e pessoas. Nesse mundo insano de pressões e padrões estéticos, Isabel apenas era, e isso era insuportável para ele. Sua cabeça já não mais a encantava.
Na manhã seguinte, Isabel acordou cedo. Antes de Serafim e Ernesto. Do momento do despertar de ambos, só o que restava dela era o pijama cheio de pelos e a carta de despedida. Serafim levantou-se, leu o texto, pegou a guia de Ernesto e ambos partiram para a caminhada.
Dona Jana já os esperava com três pães e duzentos gramas de mortadela. Os dois pãezinhos corados se tornaram como convites à lágrima, uma para cada um — e que em Ernesto se convertia em sentimentos mais difíceis de explicar na língua humana, visto que seu pranto é em cachorrês. Com o passar do tempo, as caminhadas se encurtaram até a extinção, enquanto os pães e gramas só aumentavam. Daquele pedido básico, expandiram para todo o cardápio da padaria.
Médicos e especialistas diriam que as causa mortis relacionavam-se ao sedentarismo e o excesso de carboidratos e tecnicalidades diversas, mas, em suma, é seguro afirmar que o que vitimou Serafim e Ernesto foi o coração.